domingo, 22 de maio de 2016

Winter On Fire: Ukraine's Fight For Freedom - review



A Netflix tem apostado pesado em suas produções independentes - e tem sido um caso de sucesso. No caso do Winter on Fire não foi diferente. Trata-se de uma produção belíssima, com uma fotografia exuberante, que joga na cara o quanto o Estado atua como o papel dúbio de representante e opressor do povo.

O documentário trata da insatisfação do povo ucraniano com relação às políticas do presidente Yanukovitch, o qual havia prometido uma maior aproximação com a Europa, não obstante foi do Putin que ficou mais amigo. Velhas fissuras na sociedade emergem dessa problemática, tais como a questão da identidade e o sentimento de pertencimento a uma comunidade.

O vilão maior do filme é a própria repressão do Estado Policial contra a a resiliência democrática de vencer o autoritarismo -- mesmo que a custa de vidas. Salutar é notar a mobilização popular em torno de um "esforço de guerra" para manter a praça ocupada até que o presidente caísse. É interessante notar como que a violência acabou por escalar, indo desde um protesto pacífico de amplas proporções, até à beira de uma guerra civil.


O Estado Policial contemporâneo ocidental não é uma novidade ucraniana, estando presente em vários outros países da Europa, Estados Unidos (políticas antiterroristas e de espionagem), como também no Brasil, como podemos ver na seletividade como a polícia trata as manifestações pró e contra a oligarquia brasileira. O caso mais emblemático é a expulsão das ocupações estudantis sem embasamento jurídico, as leis "antiterroristas" que podem enquadrar as manifestações sociais e populares como crime de terrorismo, e o espancamento de professores que pedem por aumentos salariais, como acontece nos estados de Beto Richa (PSDB-PR) e Geraldo Alckmin (PSDB-SP) -- e a demagogia dos "stormtroopers" tupiniquins que descem o cacete no pobre, no professor e no estudante, e tira selfie/batem continência em manifestações da classe média.

Apesar de a produção de Winter On Fire ser bem tocante, devemos desfazer alguns conceitos unilaterais que talvez possa vir a surgir ao assistirmos o filme. A questão da Ucrânia é muito mais complexa do que a produção possa sugerir. Em primeiro lugar, tomando o país como um todo, não é consenso o alinhamento com a Europa e a identidade europeia. A Ucrânia Oriental é constituída muito mais de russos do que a Ocidental; a resiliência democrática nos protestos não foi consenso, às vezes beirando ao chauvinismo, o que faz nascer o gérmen da xenofobia, no longo prazo. De acordo com o Financial Times, 55% dos manifestantes do Euromaidan era da porção oeste do país e apenas 21% da porção leste. Isso é influenciado em grande medida por Kiev fazer parte da porção ocidental, mas cabe lembrar que o leste é composto de uma população que carrega muito da identidade russa. A fronteira entre os dois mundos faz com que a Ucrânia tenha ares de estado-tampão, nacionalmente artificial, de alta instabilidade e sem uma identidade social homogênea definida.


Yanukovich teve um impeachment controverso e sumário, juridicamente falando. Talvez o maior embasamento que pudesse dar cabo à sua queda seria justamente seus crimes contra a humanidade; porém, o "entreguismo" sumário à União Europeia enraiveceu o lado oriental da força. Como consequência da queda do mandatário, a Rússia anexou silenciosamente a Crimeia - sua intenção era barrar o avanço da Otan rumo à sua zona de influência, revelando uma bipolarização ainda existente entre os dois mundos nucleares, e garantir o controle sobre as bases navais russas de Sebastopol, que agora eram colocadas estrategicamente em xeque. O território já foi alvo de grandes disputas entre a Rússia e o Ocidente no passado, sendo palco da sangrenta Guerra da Crimeia (1863). Durante o governo de Stalin, o território pertencia à República Russa; porém Kruschev, ao iniciar a desestalinização, teve a "brilhante" ideia de anexá-la à República Ucraniana, como reparação pelo Holodomor, causando tensões entre a Federação Russa e a Ucrânia após o debâcle soviético.



Após a queda do presidente, o sucessor interino Alexander Turchnov não teve um perfil moderador dos conflitos leste-oeste, mas alinhou-se completamente à Europa. Cometeu os mesmos erros que o antecessor, mas tendo outra porção da população como vítima: elaborou medidas autoritárias, proibiu o uso do russo como língua oficial e perseguiu  minorias, o que fez surgir manifestações em Luhansk e Donetsk (segunda maior cidade ucraniana), muitos deles inspirados no próprio Euromaidan. A dureza da repressão policial, aliado com o extremismo político, dessa vez mais voltado para a esquerda (consubstanciado nas declarações de independência e constituição de "Repúblicas Populares", nomes que fazem remeter à época da União Soviética) fez a sociedade civil internacional testemunhar uma escalada de violência que culminaria em uma horrorosa guerra civil, algo que quase aconteceu na Praça da Independência. O Ocidente acusa Putin de apoiar os separatistas com mísseis, armamentos e até RH.

Nada desabona Yanukovich de seus crimes de lesa-pátria e contra a humanidade. Seu governo matou pessoas inocentes a sangue frio, utilizou de violência policial desproporcional,e cometeu graves violações de direitos humanos. Mas sempre que olharmos para um documentário de natureza política, devemos questionar a forma como os fatos são apresentados, ou existe alguma base popular que tenha dado suporte - no caso ucraniano, os "glassroots" do presidente fujão estavam bem longe, em Luhansk e Donetsk, o que fez passar o sentimento de "unanimidade" para o povo de Kiev. No mais, o documentário é ótimo, bem-feito, comovente e nos passa, infelizmente, um sentimento de ameaça à democracia e à paz do mundo.

A escuridão do desentendimento está tomando conta da humanidade, tal como em 1914, infelizmente.E mais uma vez, isso acontece graças aos interesses escusos dos grandes empresários.

Nota atribuída ao documentário na Escala Mello-Oliveira: 8,5

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