A Netflix tem apostado pesado em suas produções independentes - e tem sido um caso de sucesso. No caso do
Winter on Fire não foi diferente. Trata-se de uma produção belíssima, com uma fotografia exuberante, que joga na cara o quanto o Estado atua como o papel dúbio de representante e opressor do povo.
O documentário trata da insatisfação do povo ucraniano com relação às políticas do presidente Yanukovitch, o qual havia prometido uma maior aproximação com a Europa, não obstante foi do Putin que ficou mais amigo. Velhas fissuras na sociedade emergem dessa problemática, tais como a questão da identidade e o sentimento de pertencimento a uma comunidade.
O vilão maior do filme é a própria repressão do Estado Policial contra a a resiliência democrática de vencer o autoritarismo -- mesmo que a custa de vidas. Salutar é notar a mobilização popular em torno de um "esforço de guerra" para manter a praça ocupada até que o presidente caísse. É interessante notar como que a violência acabou por escalar, indo desde um protesto pacífico de amplas proporções, até à beira de uma guerra civil.
O Estado Policial contemporâneo ocidental não é uma novidade ucraniana, estando presente em vários outros países da Europa, Estados Unidos (políticas antiterroristas e de espionagem), como também no Brasil, como podemos ver na seletividade como a polícia trata as manifestações pró e contra a oligarquia brasileira. O caso mais emblemático é a expulsão das ocupações estudantis sem embasamento jurídico, as leis "antiterroristas" que podem enquadrar as manifestações sociais e populares como crime de terrorismo, e o espancamento de professores que pedem por aumentos salariais, como acontece nos estados de Beto Richa (PSDB-PR) e Geraldo Alckmin (PSDB-SP) -- e a demagogia dos "stormtroopers" tupiniquins que descem o cacete no pobre, no professor e no estudante, e tira selfie/batem continência em manifestações da classe média.
Apesar de a produção de
Winter On Fire ser bem tocante, devemos desfazer alguns conceitos unilaterais que talvez possa vir a surgir ao assistirmos o filme. A questão da Ucrânia é muito mais complexa do que a produção possa sugerir. Em primeiro lugar, tomando o país como um todo, não é consenso o alinhamento com a Europa e a identidade europeia. A Ucrânia Oriental é constituída muito mais de russos do que a Ocidental; a resiliência democrática nos protestos não foi consenso, às vezes beirando ao chauvinismo, o que faz nascer o gérmen da xenofobia, no longo prazo. De acordo com o Financial Times, 55% dos manifestantes do Euromaidan era da porção oeste do país e apenas 21% da porção leste. Isso é influenciado em grande medida por Kiev fazer parte da porção ocidental, mas cabe lembrar que o leste é composto de uma população que carrega muito da identidade russa. A fronteira entre os dois mundos faz com que a Ucrânia tenha ares de estado-tampão, nacionalmente artificial, de alta instabilidade e sem uma identidade social homogênea definida.
Yanukovich teve um
impeachment controverso e sumário, juridicamente falando. Talvez o maior embasamento que pudesse dar cabo à sua queda seria justamente seus crimes contra a humanidade; porém, o "entreguismo" sumário à União Europeia enraiveceu o lado oriental da força. Como consequência da queda do mandatário, a Rússia anexou silenciosamente a Crimeia - sua intenção era barrar o avanço da Otan rumo à sua zona de influência, revelando uma bipolarização ainda existente entre os dois mundos nucleares, e garantir o controle sobre as bases navais russas de Sebastopol, que agora eram colocadas estrategicamente em xeque. O território já foi alvo de grandes disputas entre a Rússia e o Ocidente no passado, sendo palco da sangrenta Guerra da Crimeia (1863). Durante o governo de Stalin, o território pertencia à República Russa; porém Kruschev, ao iniciar a desestalinização, teve a "brilhante" ideia de anexá-la à República Ucraniana, como reparação pelo Holodomor, causando tensões entre a Federação Russa e a Ucrânia após o
debâcle soviético.
Após a queda do presidente, o sucessor interino
Alexander Turchnov não teve um perfil moderador dos conflitos leste-oeste, mas alinhou-se completamente à Europa. Cometeu os mesmos erros que o antecessor, mas tendo outra porção da população como vítima: elaborou medidas autoritárias, proibiu o uso do russo como língua oficial e perseguiu minorias, o que fez surgir manifestações em Luhansk e Donetsk (segunda maior cidade ucraniana), muitos deles inspirados no próprio Euromaidan. A dureza da repressão policial, aliado com o extremismo político, dessa vez mais voltado para a esquerda (consubstanciado nas declarações de independência e constituição de "Repúblicas Populares", nomes que fazem remeter à época da União Soviética) fez a sociedade civil internacional testemunhar uma escalada de violência que culminaria em uma horrorosa guerra civil, algo que quase aconteceu na Praça da Independência. O Ocidente acusa Putin de apoiar os separatistas com mísseis, armamentos e até RH.
Nada desabona Yanukovich de seus crimes de lesa-pátria e contra a humanidade. Seu governo matou pessoas inocentes a sangue frio, utilizou de violência policial desproporcional,e cometeu graves violações de direitos humanos. Mas sempre que olharmos para um documentário de natureza política, devemos questionar a forma como os fatos são apresentados, ou existe alguma base popular que tenha dado suporte - no caso ucraniano, os "glassroots" do presidente fujão estavam bem longe, em Luhansk e Donetsk, o que fez passar o sentimento de "unanimidade" para o povo de Kiev. No mais, o documentário é ótimo, bem-feito, comovente e nos passa, infelizmente, um sentimento de ameaça à democracia e à paz do mundo.
A escuridão do desentendimento está tomando conta da humanidade, tal como em 1914, infelizmente.
E mais uma vez, isso acontece graças aos interesses escusos dos grandes empresários.
Nota atribuída ao documentário na Escala Mello-Oliveira: 8,5
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