A Universidade de São Paulo é conhecida, principalmente, pelo seu renome internacional como centro de formação e pesquisa. É conhecida também pelos seus escândalos, principalmente envolvendo seus alunos -- histórias de embriaguez, estupro, morte, execração pública de calouros e racismo aparecem com certa frequência na mídia.
O que talvez não seja muito do conhecimento público é como a entidade se comporta com relação à "coisa pública", à administração da Universidade.
Juridicamente, a USP é uma autarquia especial estadual, gozando de autonomia administrativa e financeira em relação ao Poder Executivo do Estado de São Paulo. Tal autonomia serve para, teoricamente, dar maior dinamismo à forma como ela se gerencia e evitar ingerências dos poderes executivos e legislativos, resultando em uma instituição neutra e apta a concluir sua missão, sem pressões políticas ou lobbies.
Tudo isso, em teoria. A prática se mostra bem diferente,
Primeiramente, devemos notar que a comunidade USP é dividida em estamentos, tal qual num sistema feudal; e estar em um estamento mais alto significa ter privilégios, contrariando a essência da res publica e os princípios da igualdade, da supremacia do interesse público, da isonomia e mesmo da moralidade. No topo da pirâmide, encontra-se os docentes. São eles os únicos que podem se candidatar aos cargos relevantes de gerência, tais como de Presidência de Colegiado, mesmo que o cargo nada tenha a ver com o ensino. Um pode dizer que essa prática também é comum em outras entidades ou órgãos públicos, como os desembargadores são os congregados do Tribunal, os Ministros/Conselheiros, os dos tribunais, e assim por diante; sim, formalmente é a mesma coisa que acontece, no entanto, se levarmos em consideração a sintonia entre os conhecimentos necessários para ser bem sucedido como administrador público e os conhecimentos de alguém que mexe com auditoria de órgãos públicos e compararmos isso com o conhecimento de um enfermeiro, entendemos que o simples ctrl c, ctrl v de um modelo para o outro não é algo que possa ter Um docente da faculdade de medicina pouco sabe de moralidade pública a ponto de poder ser um diretor ou um chefe executivo de uma entidade pública. Uma autarquia não pode ser considerada como uma empresa, pois serve ao interesse público
Disso, surge o corporativismo. Todos os Colegiados da Universidade de São Paulo asseguram a participação de funcionários administrativos e alunos, mas sempre numa posição que não ameace a corporação. Por exemplo, a Congregação da Faculdade de Direito apresenta 81 membros; desses, apenas 4 são servidores administrativos: 5% do Colegiado; são 7 representantes discentes, sendo um ex-aluno, o que faz com que 86% da Congregação seja composta por docentes. Agora imagine que esses 86% fossem formados, e.g., em Educação Física; entendem tudo de morfologia do corpo humano, fisiologia etc. Por fim, imagine que esses são os caras que vão fiscalizar as obras, as licitações, o emprego do dinheiro público, etc. O que nos leva à perceber que. muito embora os dirigentes da USP tenham grau mínimo de doutorado (e ai de quem não coloca o Dr. antes do nome do cidadão), a eficiência não é muito melhor do que a de uma Prefeitura de cidade pequena -- às vezes, é muito pior.
Sobre os privilégios do estamento docente. O modelo patrimonialista que se instalou e permaneceu na Universidade, que tanto preza a "meritocracia", obliterou o Estado de Direito. Lá, a lógica difere do resto do país. Sua expressão maior se encontra no regime de contratação dos novos senhores doutores feudais: o regime de dedicação integral à docência e à pesquisa (RDIDP). Quem lê a expressão deve de pensar que os professores são escravizados pelo sistema; alguns deles até pensam que são, de tão descolados que se encontram da realidade; e quando se vê o estatuto, quase se tem uma certeza disso: o servidor que assim for contratado tem que dar aulas e pesquisar, além de eventualmente desempenhar um cargo administrativo. Não há folha de ponto: a dedicação é exclusiva, tem que estar à disposição da Universidade sempre que for preciso. Quem se enquadra nesse regime não pode desenvolver outra atividade econômica. Agora, de novo, vamos voltar à realidade: boa parte (não digo todos pois seria injustiça com quem realmente trabalha) dos que apresentam cargos administrativos (e ganham uma comissão muito boa para isso) somente vão às seções para assinar os documentos, muitas vezes sem ter a mínima ideia do que estão assinando. Outros fazem pior: escaneiam a assinatura e pede para o funcionário colocar no ofício, para não ter o trabalho de aparecer no local de trabalho.
Na área da pesquisa, quem está no dia a dia sabe que quem pesquisa é o aluno de iniciação científica, de mestrado e de doutorado. Muitos fazem o mesmo que fazem administrativamente: apenas emprestam seu "renome" (oriundo de uma presunção de intelectualidade simplesmente por serem professores da USP) para subscrever artigos, para que aqueles que realmente tocam a pesquisa possam adentrar no mercado do trabalho científico.
Com relação à docência, a situação é ainda pior: os bacharéis não têm didática alguma e, quando uma turma vai mal, atribuem a culpa aos alunos, na maioria das vezes sem apresentar uma forma de sanar o problema de aprendizado que surge. Outros, terceirizam inclusive a atividade docente aos mestrandos, doutorandos e alunos PAE que supervisionam.
Não obstante tudo isso, os docentes reclamam da centralização das atividades em sua categoria, mas são categóricos em dizer não a descentralizar o que dá para ser descentralizado. E, para piorar, apesar de serem servidores de "dedicação integral", 40% destes desenvolvem outras atividades fora da universidade, com o aval da Administração (que é feita majoritariamente por seus pares, como já discuti). Isso é um sintoma da camaradagem que surge entre eles na hora dos colegiados fiscalizarem: todos fazem vista grossa e, dessa forma, ninguém delata ninguém. Cabe ressaltar que, além dessa porcentagem, existem aqueles de dedicação integral que desenvolvem atividades econômicas extra-USP ilegalmente: basta pescar o nome, por exemplo, de um docente da Faculdade de Odontologia de Bauru, que seja RDIDP, e procurar no Google se o bonito tem consultório e você se espantará com os resultados.
Cabe ainda ressaltar o assédio moral com os alunos e com os funcionários administrativos, que é simplesmente lindo. Algumas comunidades e hashtags lançadas nas mídias sociais nos dão uma dimensão sobre quão escrabosa é a situação dentro da Universidade-modelo do Brasil (por exemplo, a comunidade "IFSC, isso não é normal" e "Meu Professor Feano", com diversos relatos de alunos que foram ridicularizados por terem entrado em depressão, após assédio moral, e assédios sexuais a alunos e alunas -- uma delas afirma ter pegado AIDS do professor). Em uma reunião da Congregação da Faculdade de Farmácia de Ribeirão Preto, por exemplo, diversos docentes fizeram escárnio da situação de um refugiado que pedia revalidação de diploma, por ser sírio. Uma docente do IQSC chegou a falar em alto e bom som, após uma reunião da CG, que era contra a invasão de nordestinos na Universidade de São Paulo porque a autarquia era dos paulistas e, por isso, queria ter votado CONTRA a adesão ao programa SiSU. Com relação aos funcionários administrativos, a relação muitas vezes é a de senhor-vassalo, fazendo-o muitas vezes ter de executar tarefas fora da legalidade para atender a suas vontades.
Com raras exceções, o peso no nome da USP se apoia em ombros de gigantes, de uma minoria de docentes que fazem uma pesquisa de qualidade, que se preocupam em ensinar e que desempenham atividades administrativas relevantes, preocupando-se com o interesse público. E o renome se deve muito mais à quantidade de dinheiro público que é injetado (sem fiscalização) do que à qualidade da pesquisa que surge. A Universidade de São Paulo, depois de 85 anos, continua sendo um antro de corporativismo, patrimonialismo e corrupção; mas seu reinado soberano não durará mais duas décadas.
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