Pela legalidade.
Uma nuvem densa encontra-se sob o céu que outrora fora anil do nosso Brasil. Os escândalos de corrupção, as seletividades de imprensa , a crise econômica, o clima político e o inconformismo polariza nosso povo e faz com que o gigante, o povo, levante-se meio perdido, esbravejando como uma criança sem saber ao certo o que se deve ser atacado. Para melhor situá-los e como registro histórico, relato aqui os acontecimentos desse ano de 2016 e as contradições que elas suscitam.
É impossível saber desse sonambulismo do gigante sem se remeter a alguns antecedentes históricos. O primeiro deles não acontece em solo nacional, mas em um país longínquo que poucos brasileiros sequer ouviram falar: Tunísia, 2011. Inconformado com a situação política de seu país, um quitandeiro ateia fogo em seu próprio corpo e isso deflagra a chamada Primavera Árabe. Esse movimento se espalhou pelos países vizinhos e chegou até as portas da Síria, sendo majoritariamente um movimento protagonizado por jovens.
A Primavera Árabe virou combustível para o inconformismo contra o Estado, influenciando movimentos como o Euromaidan, na Ucrânia, o qual, a exemplo do caso extremo da Síria, também culminou em uma guerra civil – e em um dos contenciosos mais perigosos para a segurança internacional no contexto pós-moderno. A mesma ideologia foi recepcionada pela juventude brasileira em 2013, no âmbito dos Protestos de Junho. O gatilho foi o aumento de R$ 0,19 no preço público do transporte urbano e logo se espraiou para as mais diversificadas pautas, sem lideranças, tais como a corrupção, tanto dos governos federativos de direita, quanto de esquerda. Todos se juntaram àqueles movimentos, tanto a classe média, os jovens direitistas, quanto a juventude esquerdista dos diversos partidos; e os anarquistas (que, em minha visão, são uma forma de extrema-direita, por pregarem a liberdade em detrimento da igualdade material – ou justiça social, a qual só pode ser garantida pelo Estado) entraram em cena.
Surge a figura dos Black Blocs e dos quebra-quebras generalizados. A repressão é desencadeada e a opinião pública brasileira afugenta-se das reivindicações, uma vez que está no DNA tupiniquim a aversão à desordem, influência positivista de Comte, que jaz em nossa bandeira de maneira não leviana. O esvaziamento de tais movimentos cria a polarização, e a direita percebe que não é viável protestar ao lado da esquerda. Apesar de haver figuras proeminentes no âmbito de cada ideologia, tais como a do Estado Mínimo do Kim Kataguiri, a de Sininho, no âmbito dos Black Blocs, e ainda a de artistas e “intelectuais” irracionalistas decadentes, como Olavo de Carvalho e Lobão, tais atores figuraram apenas como formadores de opinião, mas não conseguiram alçar a liderança de tais movimentos. Porém, o inconformismo permaneceu.
A polarização atingiu níveis preocupantes quando do resultado das eleições, nas quais a senhora Rousseff conseguiu vitória por uma margem estreitíssima, em segundo turno, sobre o senhor Aécio Neves. O país ficou literalmente dividido em dois, o norte apoiando o PT e o sul apoiando o PSDB. São Paulo ganhou o apelido de Tucanistão e alguns paulistas de ânimos mais exaltados pediam a separação do Estado com relação ao nordeste. O senador Aécio tentou uma vitória “em terceiro turno”, questionando os resultados da urna, mas o TSE indeferiu a auditoria. O país viu-se dividido entre coxinhas e petralhas e, se você não fosse um deles, pela lógica dicotômica, era do outro time. Era a volta do maniqueísmo que inviabiliza o processo de Conciliação Nacional. A guerra entre as duas potências eleitorais foi declarada unilateralmente. No âmbito do inquérito, estava deflagrada a Operação Lava Jato, que começava a ganhar a fama por investigar o maior escândalo de corrupção de nosso país. O Ministro de Justiça senhor Eduardo Cardozo manteve a postura desejável de não interferir nas investigações, sob o aval presidencial, mesmo que custasse a prisão de membros da ala governista.
Parcela da população voltou às ruas em março de 2015, quando as dificuldades econômicas nacionais tornaram-se patentes, alguns pedindo impeachment e outros pedindo intervenção militar “constitucional”, mas nenhum desses movimentos propondo soluções efetivas que sanassem o objeto. O senhor Eduardo Cunha, presidente da Câmara, rompeu com o governo, e começou a patrocinar o processo de impeachment. Num golpe abusivo de seu poder, procurou nomear uma Comissão Especial sem respeitar o princípio da proporcionalidade, que encontra-se consignada no Regimento de ambas as Casas Legislativas. O STF foi provocado e negou tais nomeações, exigindo eleições que respeitassem o princípio em comento.
Prenderam o senador Delcídio Amaral e foi quando a casa caiu. Em suas delações premiadas, citou a senhora Dilma, o senhor Lula, vários empreiteiros, o senador Cunha, o senador Aécio, entre outros. Parecia que a República havia vindo abaixo e assim parece até os dias de hoje. De alguma forma, sua delação foi parar na imprensa. Hoje, suspeita-se que os vazamentos dos documentos seja feito pelo próprio “Japonês da Federal” que havia sido ovacionado pelos grupos anticorrupção, famoso por conduzir os políticos indiciados. A imprensa utilizava-se e utiliza-se de tais documentos como bem entende. Entra em cena o senhor Sérgio Moro, juiz federal de uma das varas do Paraná, que acaba por dando um tratamento “especial” para o ex-presidente Lula, no mal sentido.
O senhor Lula foi denunciado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, uma confusão processual, uma vez que o mesmo objeto já era investigado pela Polícia Federal. O juiz Moro emitiu uma Carta Precatória que voltou cumprida sem documento comprobatório de intimação, comprometendo a legalidade do ato. Chegamos em 2016. No começo de março, mesmo sem haver documentos comprobatórios de intimação, o senhor Lula é conduzido coercitivamente, sob o aval do juiz Moro, a prestar Depoimento à Polícia Federal. Um grupo de manifestantes pró-governo cercou o aeroporto de Congonhas com o objetivo de proteger o ex-presidente de eventuais reprimendas, além de prestar-lhe apoio. Aqui, cabe uma explicação jurídica.
O MPSP investiga se há crimes de ocultação de patrimônio – o ex-presidente é acusado de não declarar um sítio em Atibaia e um tríplex no Guarujá. A Polícia Federal, cujo processo acontece sob a tutela do senhor Moro, tem como objeto principal o crime de lavagem de dinheiro durante e após o mandato do senhor Lula e os bens ocultos – sítio e tríplex – são investigados apenas como sendo o destino desses recursos desviados. Durante o depoimento, o senhor Lula afirmou que o sítio foi comprado por seus companheiros para seu usufruto, porém a disposição do bem não lhe compete. Quanto ao tríplex, afirmou que chegou a tentar comprar, mas não finalizou a compra e os vendedores até hoje não lhes devolveram o dinheiro: e não havia crime nenhum nisso, uma vez que a propriedade era compatível com os seus rendimentos. Afirmou que contratou a empresa de seu filho Fábio pelo Instituto Lula para fazer mídias e promover a imagem e disse não haver nenhuma irregularidade quanto a isso. Apresentou documentos comprobatórios da situação do sítio de Atibaia e do tríplex. Com relação à Petrobrás, devido à natureza das perguntas, deu para perceber que a Polícia Federal não faz ideia sobre como o ex-presidente pode ter atuado no desfalque. O ex-presidete saira juridicamente fortalecido do depoimento.
Após o cumprimento da condução coercitiva, houve manifestações bem gordas por todo o Brasil. O Ministério Público de São Paulo pediu a prisão preventiva do ex-presidente. Acontece que ele ainda não figura como réu no processo e o pedido é descabido. Foi para a mão de uma juíza de São Paulo e esta lavou as mãos como Pilatos, mandando o processo para o juiz Moro. Antes que houvesse tempo hábil de o pedido ser apreciado, o senhor Lula foi nomeado ministro-chefe da Casa Civil e passou a ter foro por prerrogativa de função (e não foro privilegiado, como dizem – não é privilégio nenhum ser julgado sem direito de recurso).
No dia 16 de março, o senhor Moro, que claramente atua de maneira política, ao realizar o processo saindo de suas mãos, levantou o sigilo das conversas telefônicas gravadas pelo ex-presidente, um dia antes da cerimônia de posse. Dentre as conversas, algumas ficaram famosas: uma na qual o prefeito do Rio de Janeiro senhor Eduardo Paes pede para Lula parar com a mania de pobre de ficar comprando sitiozinho e barquinho, o qual seria indício de que ele havia comprado o sítio mesmo. Provavelmente, o senhor Eduardo Paes será intimado a prestar esclarecimentos sobre o conhecimento de o sítio ser do ex-presidente ou não – é o mínimo que esperamos. O mesmo prefeito ainda desmerece uma cidade do interior do Rio de Janeiro, enfurecendo sua população.
Dentre as conversas, há comentários de tom misógino do ex-presidente, os quais não guardam motivos nenhum para serem tornados públicos, uma vez que não tem ligação material com as razões fáticas da Operação Lava Jato. Mas o mais preocupante foi um telefonema da senhora Rousseff sobre o termo de posse do senhor Lula, em fevereiro, no qual ela pede para o senhor Lula usar o termo somente em caso de necessidade. De acordo com o juiz federal, isto seria uma forma de o senhor Lula obstruir a justiça, de forma premeditada, e por isso deveria ser combatida. No entanto, meus senhores, não existe obstrução de justiça quando o citado ainda não é réu no processo. Foi uma forma de incitar mais ainda a violência e instabilidade no nosso país. E o povo, altamente receptivo a essas manipulações, sem senso crítico e apreciadores de brigas de torcida, acata sem maiores meditações. Ademais, não cabe ao juiz opinar sobre a situação política e jurídica de ninguém depois que o processo saiu de suas mãos. Ele mostrou-se totalmente suspeito para atuar no processo e isso só tem um nome: corrupção. Em sentido ético.
No mesmo dia, tornou-se pública a parte da delação do senador Delcídio sobre as relações do senador Aécio no caso Furnas e cita sua conta offshore em Liechtenstein. O povo brasileiro aprendeu algumas palavras novas nisso tudo. O caso pode reabrir a famosa “pasta amarela”, que apresenta extratos de contas no exterior em nome de sua família e documentos sobre fundações também offshores abertas para serem beneficiárias desse dinheiro. Em 2010, quando essa pasta chegou as mãos do Ministério Público, este órgão não teve a mesma “sede de justiça” que está tendo contra o senhor Lula, e mandou arquivar por “falta de evidência de irregularidades”. O acontecimento ganhou uma pequena manchete na página do G1, bem abaixo dos protestos em letras garrafais que estavam acontecendo de manfeira espontânea, pela primeira vez, em partes do Brasil. O telefonema vago da presidente teve um tratamento muito mais, digamos, relevante que a materialidade da acusação contra o senador Aécio.
O dia 16 foi quente. Além desses fatos, foi impetrado no Supremo Tribunal Federal um mandado de segurança contra a posse do senhor Lula no ministério de Dilma. O ministro Celso de Mello indeferiu o pedido, alegando que não havia obstrução de justiça quando o indivíduo em comento ainda não é réu em nenhum processo. Manifestantes seguiram para a frente da casa do ex-presidente com o intuito de impedir sua saída para Brasília, mas a CUT estava lá e promoveu um cordão de isolamento com o intuito expresso de proteger a propriedade do mesmo. Houve confrontação, gás lacrimogênio, spray de pimenta. Aconteceram protestos contra Lula,majoritários, epró, minoritários, em todo o país e pela primeira vez, até protestantes de direita foram reprimidos pela força policial. Trata-se de uma escalada de violência. Enquanto isso, na sessão plenária do Supremo, discutia-se sobre a alteração do rito do processo de impeachment, solicitado pelo presidente da Câmara. O pedido foi indeferido.Estudantes ocuparam a Pontífice Universidade Católica em um ato contra o golpe, pela legalidade.
É o dia 17 de março, dia da posse. Manifestantes da CUT, MST, PT e simpatizantes de esquerda ocuparam a frente do Palácio do Planalto para viabilizar a posse dos novos ministros da senhora Dilma, entre eles, Lula. Protestantes inconformistas, os “amarelos”, bem como a Tropa de Choque, cercaram a primeira manifestação, a dos “vermelhos”, deixando-os ilhados e sem rota de fuga. Dentro do Salão Nobre, a senhora Rousseff criticou a seletividade dos jornais e prometeu tomar as providências administrativas e judiciais contra o juiz Moro. Salientou que não seria tolerável vazar conversas telefônicas da presidente, que isso cabia ao Supremo. O evento era televisionado ao vivo pela Rede Globo. Os parlamentares e representantes da sociedade civil que estavam presentes à solenidade gritaram palavras de ordem que foram televisionadas para todo o Brasil: “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”, “Não Vai ter Golpe!”. Lula foi empossado, porém sua alegria duraria pouco: uma ação popular impetrada na justiça federal do Distrito Federal foi deferido. A causa de pedir: obstrução da justiça. Em razão disso, o ex-presidente foi apelidado de “Ministro Miojo”. Cabe recurso.
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