sexta-feira, 4 de março de 2016

A clivagem das classes medias brasileiras e sua implicação política


É inegável que durante o governo Lula e Dilma boa parte da população tenha aumentado a renda e o número de pessoas na classe média subiu sensivelmente. Em pronunciamento, a sr.ª Rousseff declarou sua intenção de fazer do país uma nação de classe média. No entanto, com a ascenção da classe C e D ao status de classe média, houve uma clivagem social entre a “classe média tradicional”, formada por burocratas estatais, liberais e empresários que operam no mercado, sobretudo no comércio, já há algum tempo, e a “nova classe média”. Essa clivagem pode ser analisada sobre vários aspectos, alguns dos quais: a subversão do sistema opressivo da classe média sobre os indivíduos da classe pobre que ascenderam (frases como “se eu soubesse que ser empregada doméstica daria tanto dinheiro não teria estudado “ ilustram esse pensamento de “poder de opressão perdido”); numa abordagem realista, a perda de espaço e de importância marginal que um indivíduo tradicionalista galgou, uma vez que terá que compartilhar o poder com os novistas que agora fazem parte de seu “estamento” (uma visão de poder tipicamente de sistemas de indivíduos que não cooperam entre si, num jogo de soma zero); e um choque de valores, uma vez que a classe média tradicional é fundamentalmente conservadora e a ascendente tende a ser tipicamente consumista e ostensiva, bem como mais ‘liberal’ no sentido social e jurídico da palavra.
Ao mesmo tempo que o governo adotou uma política expansiva da economia, cresceu-se o déficit fiscal, fazendo valer a velha fórmula econômica de que é impossível ter uma política expansiva e ela se sustentar por longo tempo e, a seu tempo, o Estado teve que adotar políticas de controle que não são muito agradáveis à opinião pública. A classe média tradicional, conservadora e, por isso, reacionária, a qual não estava satisfeita com a ascenção da nova, logo teve um motivo mais do que meramente reclamatório para poder alegar que o governo era culpado pelas mazelas do país. E, sim, os detentores do poder são sim responsáveis pela crise que agora desponta, mas devemos tomar essa responsabilidade com cautela, pois, conforme a história explica, sem jogadas expasionistas, o ciclo de dependência externa nunca se rompe, e o Brasil seria sempre um país subserviente. Basta vermos as políticas de industralização de Dom Pedro II, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e até mesmo da repugnante Ditadura Militar, todas expansivas, todas acarretando déficits fiscais e descontrole nas contas públicas e todas contribuindo decisivamente para o crescimento econômico do país e sua reinserção política no mundo, quer as pessoas gostem dessa ideia ou não. Porém, o que diferencia a política do sr. Lula e de sua herdeira sr.ª Rousseff das demais é justamente o seu caráter redistributivo de renda, o que é um crime para a opinião pública brasileira. Devemos lembrar que a opinião pública de um país é formada sobretudo pela classe média, uma vez que o pobre não consegue, em boa parte dos casos, mobilizar-se suficientemente ou até mesmo formar uma opinião de massas homogênea, devido a inúmeros fatores – problemas em sua formação educacional, falta de tempo devido à natureza de seu serviço (mais operacional que o da classe média), falta de acesso aos canais de comunicação para que façam valer suas opiniões e até mesmo a inclinação em negar a sua condição de pobre e querer alinhar sua opinião com a dos médios. Já os ricos manipulam a opinião da segunda classe, pois, como são em tremenda minoria, por si só, não constituem uma opinião classista definida.
A nova classe média se solidificou ao longo da década e um grupo passou a não se identificar com os pobres, até porque o sonho desses é justamente ter os mesmos privilégios dos ricos, uma vez que seus indivíduos, em certa medida, são voltados ao consumo e à ostentação desse consumo nas mídias sociais. E grupo acabou rachando em duas porções: aqueles que começaram a se alinhar aos valores da classe média tradicional, adaptando a questão da ostentação, mas compartilhando suas opiniões sobre os direitos sociais e individuais; e aqueles que voltaram-se à “esquerda reacionária”, reagindo à reação dos conservadores e à ameaça real que isso gerou de se acabar com a redistribuição de renda. A crise catalisou essa divisão e o resultado das eleições prenunciou o que estaria por vir: praticamente um empate técnico das duas vertentes. A inflação subiu e o pobre começou a sentir no bolso o peso da crise e boa parte deles passou a não mais apoiar o governo. A ideia de corrupção foi instrumentalizada para poder justificar a polarização – aqueles cidadãos que não são ingênuos, no seu íntimo, sabem que a corrupção é generalizada e também mora nos setores da direita – e as classes média e baixa começaram  a pedir por mais liberalismo. Mas a quais interesses atende a abertura do mercado?
O liberalismo e seu filho, o neoliberalismo, criam um ambiente de competição sem contrapesos; um sistema de anarquia comercial onde só os mais fortes sobrevivem. E os mais fortes não estão na classe média, mas, sim, na elite do país. Eu sei que os liberalistas não gostam da palavra “anarquia”, tão apegados que são aos valores da ordem e dos bons costumes, mas não existe outra palavra para outro sistema de livre competição onde o Estado não influencia. E, num sistema anárquico, o mais forte se sente livre para predar o mais fraco. Com a abertura de mercado, as grandes empresas instaladas no país podem injetar capitais o suficiente para criar uma economia de escala impossível de se competir para aqueles que tem uma produção local, às vezes quase manufatureira, sem muito know-how, e os grandes conseguem baixar seus preços a níveis suficientes para quebrar o pequeno e  o médio. Aqueles que percebem que isso vai acontecer, logo vendem suas franquias para as empresas maiores e tentam abrir outro negócio com o dinheiro da venda. Outros quebram. E com os bailouts, há uma diminuição no número de pequenas e médias firmas, e consequentemente diminui-se  a demanda de mão de obra. Os ex-empresários falidos não conseguem nem abrir outros negócios, nem arrumar um emprego como mão de obra assalariada. O número de desempregados cresce. Estes vão recorrer ao Estado uma solução e uma nova política expansionista é executada. Desssa forma, a classe média está sempre fadada a nunca atingir o seu objetivo maior de ser rica. E muitos deles não são menos capazes que quem já detém o dinheiro. Triste vida a da “meritocracia” enganosa.
Talvez se estes indivíduos se identificassem como classe média, de uma forma geral, sem cismas, e entendessem que quem obstrui o seu crescimento é a própria elite dominante, os empresários que “deram certo”, a situação fosse diferente. Primeiramente, é preciso sim um empoderamento das classes mais baixas, pois serão estes que irão demandar seus produtos e eles precisam ter renda disponível para gastar, uma vez que as pequenas e médias empresas apresentam produtos com valor agregado bem menor do que o das grandes empresas, quer seja por problemas de dominar as técnicas mais evoluídas, por falta de economia de escala competitiva ou simplesmente pela natureza de produtos que as empresas menores podem fornecer (raramente uma pequena empresa consegue fornecer produtos de luxo, bens de Giffen, por exemplo). E é sempre bom lembrar que quem consome, em larga escala, produtos de baixo valor agregado são os pobres. Em segundo lugar, o pequeno e médio empresário deveriam pressionar o governo a adotar políticas fiscais e econômicas restritivas aos ricos e que privilegiassem a classe média e essa pressão teria que ser aplicada de forma concertada, não da maneira difusa como se hoje vê. A mentalidade de competição, do querer “chegar lá”, chegou a tal ponto que os pequenos e médios empresários não conseguem se aliar entre si para poder abocanhar a renda dos mais ricos – a mentalidade é sempre de que eles estão competindo uns contra os outros e os grandes são exemplos a serem seguidos. Dessarte, não se verifica a formação de uma frente unida e esses indivíduos acabam sendo um grupo volante de pessoas, os quais ora compõem a classe média e ora compõem a classe baixa. A parte que sobra, que acaba componto o grupo realmente “tradicional” da classe média, são os funcionários públicos, os liberais classistas e aqueles que já conseguiram dominar e consolidar uma parcela do mercado – mas, mesmo estes últimos, não conseguem mais renda do que já estão acostumados e, se aparece alguma novidade produtiva, correm o risco de também eles perderem seus status.

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