sexta-feira, 4 de março de 2016

Feminicídio


Quem acompanha os comentários nas redes sociais por vezes se surpreende com a reação de certos indivíduos da sociedade com relação à determinados temas. E um que me chamou a atenção esses últimos dias foi o assunto Feminicídio.

A tipificação do crime foi incluída pela Lei 13.104 a qual, além de incluí-la no Código Penal, caracteriza-a como crime hediondo. O fato de ser um homicídio qualificado faz a pena aumentar de 6 a 12 anos para 12 a 30 e a inclusão no rol de crimes hediondos acarreta um tratamento mais severo pela justiça: o feminicídio, a partir da nova lei, é inafiançável e não pode ter a pena reduzida. Tal iniciativa surgiu como resposta aos altos níveis de violência doméstica verificados no país, sendo que a esmagadora maioria (mais de 90%) tem como vítima a mulher. O crime é caracterizado quando verifica-se que a razão do homicídio tenha íntima relação com a condição de ser do gênero feminino (algumas evidências que podem ajudar a tipificar o assassinato assim qualificado é a mutilação de partes do corpo, como seios e genitálias, bem como assassinatos cometidos por parceiros, dentro de casa ou por razão discriminatória). A lei prescreveu ainda agravantes que aumentam a pena em 1/3: quando o crime é cometido durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto; contra menor de 14, maior de 60 ou pessoa deficiente; ou quando é cometido na frente de ascendente ou descendente da vítima. A proteção diferenciada advém do fato de que muitas mulheres são mais vulneráveis à violência.

A divulgação do sancionamento da lei e de sua vigência causou certa indignação em alguns internautas, alguns deles alegando que feria a Constituição, outros que seria uma especialização exacerbada da lei penal e havendo ainda um terceiro grupo que diziam que a lei já qualificava o homicídio de forma genérica, não havendo necessidade de criar uma distinção para o caso do assassinato de mulheres. Tratemos então de cada argumentação separadamente.

Violação da Constituição. O artigo 5º da Constituição prescreve que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...), nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. Fazendo uma leitura liberal do dispositivo, sem ler o resto da Constituição, aparenta-se sim o feminicídio violaria o dispositivo citado. No entanto, a mesma Constituição prescreve em seu art. 4º, II, a prevalência dos direitos humanos na ordem social brasileira e é direito reconhecido, ao menos no mundo ocidental, que a mulher deverá receber proteção especial em virtude de sua condição de vulnerabilidade; e o artigo 226, §8º, mais especificamente, diz que o Estado assegurará a assistência à família, na pessoa de cada um dos que integram, criando mecanismos para coibir a violência doméstica no âmbito de suas relações. Só esse dispositivo já cai por terra o argumento. Interpretando melhor o inciso I do art. 5º, podemos perceber que são os direitos e obrigações que serão outorgadas de forma igualitária, e não a forma de assegurar tais direitos e obrigações. O direito que um tem a vida, o outro também tem; a obrigação decorrente de não matar também é igual; mas as diferenças de vulnerabilidade deverão de ser observadas – o princípio da igualdade que rege o Brasil é o da igualdade material (equidade) e não o da meramente formal. Em outras palavras, os deveres são iguais, mas a responsabilidade é diferenciada (como diria o tio do Homem-Aranha, “com grandes poderes surgem grandes responsabilidades”).

Especialização exacerbada da lei. De acordo com os facebookers que defendem essa tese, já que existe feminicídio, deveria de existir o machicídio etc. Esse é um argumento bastante ad hoc, pois não se leva em consideração o motivo pelo qual a lei se especializou – pela proteção ao lado pretensamente mais frágil. A pretensão é um instituto do direito que estabiliza a ordem jurídica, dando previsibilidade ao sistema, que surge de um fato verificado de forma frequente na sociedade. Por exemplo: o nepotismo é a pretensão de que um funcionário público está empregando um parente para favorecê-lo e não por sua capacidade profissional de exercer aquele cargo; um juiz não pode atuar em determinado processo cuja parte é parente seu porque pretensamente terá sua imparcialidade comprometida. No caso do feminicídio, o comportamento levado em consideração é que a maioria dos assassinatos domésticos são cometidos de autoria masculina e contra a mulher; com isso, a mulher é considerada, aos olhos do Estado, como mais vulnerável a priori. O “machicídio” não é justificável pois não se verifica um comportamento reiterado que possa torná-lo como um fenômeno criminal relevante: trata-se portanto de um homicídio simples ou outra espécie de qualificado. Enquanto houver violações do direito à vida ou da dignidade da pessoa humana em razão de uma característica uniforme que torne a vítima oprimida pelo agressor, a lei irá se especializar até que aquele fenômeno desapareça.

“Já existe qualificadores de homicídio por motivo torpe, não haveria a necessidade de qualificar o feminicídio”. O art. 121, §2º, I, do Código Penal caracteriza como qualificado o homicídio por motivo torpe. De acordo com a doutrina, o homicídio por motivo torpe é aquele cometido de forma desprezível, repugnante, que demonstra falta de moral, podendo o assassinato por preconceito ser classificado como tal. Nesses casos, a pena varia de 12 a 30 anos, tal qual o feminicídio, no entanto, o crime não é considerado hediondo, o que demonstra uma diferença formal entre os dois casos: o homicídio por motivo torpe é menos grave que o feminicídio. No campo material, a interpretação de que a vítima foi morta em razão de sua condição de mulher como motivo torpe ficaria a cargo dos juízes e tribunais, podendo haver diferenças de tratamento de um fórum para o outro; criar um tipificador especial deixa bem claro a gravidade do crime. No plano político e sociológico, esse fenômeno denota que o feminicídio não é um motivo torpe qualquer e demonstra também que há uma mudança de consciência do Estado e da sociedade, deixando evidente que começa a se criar a mentalidade que é necessário proteger e reinserir a mulher de uma forma mais independente no contexto político e social. Por isso, a criação do feminicídio extrapola o plano jurídico e irradia para o social.

Porém, o que mais me chama a atenção é o motivo por trás das reclamações contra a tipificação do novo crime. Percebe-se que muitos dos que reclamam dela são conservadores e defendem a manutenção da ordem e daí fica o meu questionamento: qual é o problema de se criar outra tipificação “inútil” se a pessoa não é criminosa? A nova tipificação não é a favor da manutenção da ordem? Em outras palavras, é por estar preocupado em se ver como réu um dia que se queixa da nova lei ou é por que justamente por saber tais atos extrapolam o âmbito jurídico e denotam uma nova mentalidade, onde o “direito de opressão” encontra-se ameaçado, que as pessoas reclamam? A preocupação com o tratamento “diferenciado” só demonstra o quanto ainda existe uma parcela genuinamente machista da nossa sociedade e que essa galera está com medo de perder a importância: é quando o conservadorismo se torna reacionário.

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