sexta-feira, 23 de setembro de 2016

O feminismo e o consumo

Fig. 1: O feminismo é de esquerda?

Uma vez, no meio do meu infindável caminho de estudos para conseguir um lugar no Itamaraty, li em um certo livro de economia que "não há inclusão social de grupos bem sucedida sem que o mercado aprove". Infelizmente, mesmo aqueles que contestam o sistema não querem a sua superação (nem digo queda), mas apenas inserirem-se nele. Nem mesmo o feminismo se safa dessa tendência pós-moderna de vetorizar os valores pela ética do consumo.

Em primeiro lugar, é bom entender que existem "feminismos" e não mais O Feminismo. Levo em consideração, portanto, que existe aquela parcela das engajadas que está cansada da posição subalterna doméstica, que não raramente acabam terminando em violência doméstica, estupro e aborto clandestino, bem como a culpabilização da vítima. Essas são as grandes pautas difusas do feminismo pós-moderno.

Sem embargo, acho importante traçar um paralelo entre as militantes da causa e entre as sujeitas da pauta. Se repararmos bem, não há uma grande sobreposição entre os dois grupos. As feministas que lotam os coletivos, que ocupam órgãos políticos de representação, cargos na administração pública ou que formam grupos sociais dificilmente são aquelas que sofrem violência doméstica sistemática; vale notar que o perfil social do grupo do feminismo "político" é basicamente de classe média com um nível de instrução maior; já as que sofrem majoritariamente (mas não exclusivamente) a violência masculina nas vias de fato, muitas vezes de forma silenciosa, são de classes mais baixas e de nível de instrução menor. Portanto, já há um primeiro descolamento entre a quem interessa mais o feminismo e quem pratica o ativismo.

Para muitas das que sofrem a violência física e psicológica, há inclusive uma militância pela causa machista -- a maioria luta "pelo fim do feminismo", pelo fim do "mimimi", da "chatice" e etc -- todas essas aspas, se retiradas, servem unicamente para depreciar o movimento, mostrando o quão reacionário é o patriarcado, principalmente nas mentes femininas. Algumas nem percebem ou sequer se importam de serem objetificadas, sem perceber inclusive que é por essa via que elas não conseguem chegar a lugar algum, tendo uma vida submissa. Então, se há essa distância entre sujeito passivo e ativo, por que motivos alguém pratica o ativismo? Dentre as respostas, posso sugerir algumas.  

Primeiramente, existem aquelas que genuinamente sofreram alguma experiência traumática e resolveram pôr a boca no mundo. Em segundo lugar, existem aquelas que fazem isso pelo efeito contágio, sendo mais comuns em coletivos universitários e juventudes feministas partidárias; é uma forma de pertencer a um grupo, muito embora estas sejam parecidas com os marxistas acadêmicos que fundaram a via "fabiana" para o socialismo -- a proposta que elas querem tem um viés ético, mas não necessariamente idealista (in stricto sensu), pois é limitado pelo muro que separa as ideias do pensador da realidade do oprimido. São no máximo acadêmicas, quando não meramente replicadoras de paradigmas, sem se preocupar com os porquês e senões. E há um terceiro grupo, com muito mais poder, que são aquelas que usam do feminismo como uma via política. Mas as oprimidas mesmo, que são aquelas que apresentariam o ímpeto ideológico na sua forma plena, via de regra são excluídas do feminismo por motivos estruturais, tanto de natureza da ideologia, em sua forma pós-moderna, gourmetizada, quanto (e principalmente) sociológica. 

Dentre esses grupos, somente o primeiro é ideológico. O segundo é uma forma de pertencer a um grupo e o terceiro uma forma de exercício do poder. 

As maiores vítimas da opressão masculina, mesmo com as políticas públicas vigentes, não conseguem livrar-se das amálgamas e até são mais reprimidas, devido ao ódio que surge para contrapor essa ideologia. Falta um fator que dê acessibilidade às mulheres sofridas, que é de viés cultural. Não obstante, quem deverá prover esse fator é a classe média, que infelizmente não se mistura com a classe pobre -- quer ajudar somente de longe, escrevendo textinhos na internet -- tornando inócuas as ações positivas das pautas. Esse fator de "não se misturar", somada à necessidade de promover uma "revolução cultural" para trazer as mulheres que sofrem ao feminismo acabam fazendo surgir um "moralismo feminista", muito difundido nas redes sociais, que acaba sendo utilizado pelas pessoas que se opõem como armas de deslegitimação (a tal da "chatice de feminista"). Acho que você concordaria comigo esse ponto quando se lembra da quantidade de acéfalos que falam que o feminismo é coisa de mulher que não se depila, de lésbica e blablablá. 

E onde entra o consumo nisso tudo? 

Bom, o mercado aceita o segundo e o terceiro grupo, pois esses não colocam em risco a ordem vigente -- pelo contrário, reforça-o. O capital acaba fomentando e viabilizando a ação do feminismo, inclusive fazendo doações e campanhas de marketing. E o movimento acaba se transformando em "um caso de sucesso", de "superação social", até de meritocracia, redundando naquela questão que havíamos conversado hoje de tarde. Ou seja, ele é remodelado, dotado de novas vestes pelas empresas, que ressignificam os paradigmas, dentro dos moldes neoliberalistas. É a marketização do movimento. E ele é interessante ao mercado porque empoderar certas parcelas da sociedade significa ter uma renda disponível a mais que pode ser gasto em um nicho definido; e o mais irônico disso tudo é que esse consumo de nicho acaba reforçando os padrões do machismo, pois as mulheres de classe média, financeiramente emancipadas, sentem-se livres para consumir e retroalimentar o próprio patriarcado. Lembremos que as propagandas de cosméticos são as mais conhecidas por apoiar o feminismo, pelo menos nos Estados Unidos. E essa independência não é completa: à mulher é dado o poder de trabalhar, não ter filhos e ter liberdade sexual, mas o mercado do trabalho ainda exige que a mulher "se ponha no lugar". Como sintoma desse processo, podemos observar o surgimento e a denúncia cada vez maior do mansplaining, o qual é uma próxima trincheira do machismo a ser superada.

Fig. 2: Avon passa sermão no Facebook

Já o grupo ideológico, minoritário, que enxerga esse processo de emancipação incompleta, recusa-se a aceitar o empoderamento nesses termos, não consumindo nesse mercado de nicho e acabam sendo estigmatizadas pela sociedade (não se esqueça que a classe média assalariada replica o discurso do patrão, pois o sonho do primeiro é chegar ao posto do segundo). Cabe lembrar que essas que são ideologizadas são as que mais contribuem para fornecer o material temático do movimento feminista -- elas escrevem em blogs, lideram certos grupos e são campeãs em criar polêmicas (o que eu apoio). Acaba que, por serem as favoritas a serem contraditas pelos estratos conservadores, elas acabam sendo a imagem que a sociedade civil como um todo tem do feminismo.

Por fim, o mercado entende que o grupo das mulheres mais suscetíveis de opressão, por ser constituído de pessoas mais pobres, assalariadas e que apresentam "problemas de mulheres" (na visão machista e empresarial), por apresentar menor instrução, maior chance de engravidar, não podem ser empoderadas, pois isso seria um encargo para o empresariado. Portanto, os produtos que chegam à sua cesta de consumo dificilmente estimularão a independência e equidade de gênero, ficando blindadas à qualquer intervenção ideológica que poderia mudar sua realidade. Pelo contrário, os produtos que todos os pobres têm acesso reforçam a submissão e o papel sexual da mulher, vide a cultura da cerveja e do futebol. 

Ainda sobre o consumo, é interessante a leitura deste editorial: https://www.theguardian.com/social-enterprise-network/2011/jun/20/social-enterprise-feminism-parallel

O The Guardian é de viés de centro-esquerda, e mesmo assim, uma das conclusões do editorial é "So let feminists wear make-up and social enterprises go where no one has gone before. You never know, we might like what we find. I like marriage and motherhood and I like taking ideas about social value and profit-making not profiteering into new territories like public services. It all feels right, whatever the purists say."

Isto não soa absurdo quando você percebe que a maior parte das que engrossam o coro feminista advém de uma classe média burguesa que ama o consumo, não?

Portanto, o que nota-se é um descolamento entre o discurso e a ação real da maior parte das pessoas que se dizem feministas. Isso porque eu nem citei quando o interesse resguardado extrapola o âmbito da mulher: todos querem que o Temer caia, mas é sintomático que grupos feministas, negros, gays e trabalhadores não se misturem uns com os outros, (principalmente se pertencerem a partidos diferentes) pois querem monopolizar a pauta dos protestos sem se solidarizar com os demais. Daí faz-se ver melhor a tal da fissura da esquerda oriunda dessa "nova esquerda" que não pensa nos direitos sociais como uma finalidade em si, mas como um caminho para o consumo e para a inserção social, deixando intatos os valores atuais. 


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