A Revolução Científico-Tecnológica veio para ficar e desafiar o mundo como havíamos conhecido; nesse processo, as empresas transnacionais desafiam o poder dos Estados no sistema mundo, fenômeno que é conhecido como globalização. Toda essa clivagem entre o novo e o antigo será confrontada pela sociedade global e a querela do Uber com os táxis urbanos é apenas mais um episódio dessa novela
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De um lado, os taxistas
De acordo com a Wikipedia, táxi é:
" (...) um automóvel destinado ao transporte de passageiros e provido de um taxímetro.[1] É um modo de transporte público com características entre os veículos privados e os ônibus
urbanos, sem uma rota regular e contínua. Uma crítica que se costuma
fazer aos táxis é o fato de eles não serem acessíveis a grande parte do
público por serem um transporte individual de tarifa
comparativamente alta em relação aos transportes de massa, que têm
rotas preestabelecidas, horários fixos, tarifas publicadas e são
acessíveis economicamente a todos"
É interessante notar a definição, pois trata-se de um transporte público, apesar de ser utilizado um veículo privado para tal. Por serem de interesse público e por utilizarem a via pública como uma forma de gerar receita,quem tem interesse em ser taxista precisa de uma permissão do Estado, bem como arcar com uma carga tributária relevante, associar em cooperativas, etc. Aqui no país, pelo princípio da predominância do interesse, por ser um serviço intraurbano, via de regra, o ente federativo responsável por regulamentar a atividade de táxi é do Município.
Em geral, o mercado é fechado, pois o veículo precisa de uma licença especial para circular, assim como o motorista precisa de uma habilitação específica. Para as pessoas que não tenham um carro licenciado, podem trabalhar como taxista utilizando um taxi de frota, ou até mesmo alugando carros licenciados de outros taxistas. O leilão de licenças alcançam altos valores
De outro, o Uber
São pessoas cadastradas através de um aplicativo americano que recebem uma remuneração diretamente da empresa. Não existe taxímetro, quem determina o preço é a empresa, supostamente a partir de considerações de oferta e procura. Dessa forma, como uma empresa centraliza todas as corridas em seu sistema, o serviço fica mais inteligente, demora menos e sai mais barato (pelo menos por enquanto).
Round One, Fight!
Ao expormos as duas coisas e pensarmos unicamente no curtíssimo prazo e nos nossos bolsos, o Uber parece ser, de longe, a ideia mais atraente. Como de praxe, antes de escrever meu textão e disponibilizar o que penso na internet, fiz um debate com alguns amigos meus e dois deles, que defenderam o sistema novo sem ressalvas, deram alguns argumentos que pareciam irrefutáveis. Basicamente ampararam seus respectivos pontos de vista no livre mercado: a lei da oferta e da procura faz o preço despencar, coloca mais gente no mercado, todo mundo fica feliz, fim de papo. Até porquê, transporte é uma commodity, carece de diferenciação, pelo menos olhando o mercado como um todo. Muitos defensores do liberalismo costumam ver somente o lado econômico da coisa.
De outro lado, os taxistas dizem que Uber é um transporte clandestino globalizado, o que não é de tudo mentira, mas tampouco é motivo o suficiente para encerrar a discussão. Vamos por partes.
"Uber fomenta o livre mercado"
Mentira. O Uber fomenta o monopólio e a prova disso é que a precificação quem controla é a empresa que comanda o aplicativo. Hoje parece ser mais viável andar de Uber, até porque estamos naquela primeira fase de conquista de mercado tradicional, no qual a nova empresa pratica um dumping para desbancar as outras que estão no mercado. A bem da verdade, os motoristas associados não vão exatamente competir entre si como "empresas", mas como mão de obra, o que muda bastante a história. O Uber é, na verdade, uma empresa monopolística que terceiriza sua atividade-fim, algo bem diferente do que pregam por aí e, depois que dominarem o mercado, farão o que toda empresa monopolística faz: subir o preço quando convier.
"O preço do taxi é abusivo e restritivo"
Isso é verdade. Claramente o taxi deveria ser um pouco mais barato, mas até que ponto? E isso cabe para a precificação do Uber também. Se o preço for barato o suficiente, a demanda crescer, menos pessoas usarão o transporte coletivo. Muitos preferirão pagar um pouco mais e ir isolado do resto da sociedade -- ainda mais aquela faixa da classe média que tem horror em ter que dividir espaço com a classe mais baixa. E todo mundo sabe o que acontece com os serviços públicos que são prestados unicamente para as faixas mais pobres: ficam sucateadíssimos. Portanto, a acessibilidade do preço do taxi, em demasia, colocaria em xeque o sistema de transporte público coletivo (aliás, as próprias empresas de ônibus deveriam estar preocupadas com o Uber), o que seria terrível para os grandes centros urbanos.
Isso somente levando em consideração uma maior acessibilidade no preço. O impacto no trânsito seria maior ainda, pois, conforme o número de "caronistas" aumentam, aumentaria também a oferta de motoristas "caroneiros" (entre aspas porque, no meu entendimento, isso não é carona; carona é quando, na camaradagem, alguém leva outra pessoa a outro lugar sem cobrar nada) -- o que aumentaria o fluxo de automóvel, aumentando a depreciação das vias públicas.
Outro ponto que deve ser salientado também é que o Uber privatiza o espaço público. As vias públicas são de responsabilidade do Estado e, portanto, cabe a ele zelar pelo reparo das estradas e é por isso que não é legal entregar um serviço de interesse público aos interesses privados. O maior erro dos dias atuais é querer privatizar o espaço público e publicizar o espaço privado, principalmente quando se trata de capitalizar o bônus e socializar o ônus. E é justamente o que aconteceria. Sem um regime de permissão, regulamentado pelo Estado, a depreciação das vias públicas, as quais inclusive motoristas particulares usam, não teriam uma contrapartida para supri-las, pois a arrecadação fiscal cairia. Mas o Estado certamente precisaria fazer algo e, não tendo as licenças para recorrer, "socializaria" com TODOS os cidadãos o quinhão da arrecadação que cabia aos taxistas. Portanto, haveria a "privatização" das vias públicas para gerar receita para uma empresa do exterior e a "socialização" da reparação do meio gerador de receita dessa empresa, que é relutante em pagar nossos impostos.
"Transporte público coletivo é de má qualidade..."
"... e por isso tem que privatizar". É uma simplificação horrenda da solução para o problema. Sim, concordo que o transporte público, com pequenas exceções, é digno de pena e eu sinceramente acho que, se existir o inferno, a gente vai de transporte público coletivo em horário de pico e eu não nego que as concessionárias de ônibus e metrô sejam a pior máfia existente nos estados e municípios. Mas não, o esquema não é privatizar. O esquema é cobrar dos políticos, fiscalizar os serviços e até soltar uns molotov na rua quando as coisas não vão como gostaríamos que fosse; o Brasil até parecia estar indo para o lado certo quando resolveu protestar contra o aumento das passagens de ônibus em 2013. O certo é politizar-se e não dar ouvidos aos mais velhos, os quais foram receptivos à propaganda da Ditadura Militar de que "política é coisa de gente ladra".
A impressão que se dá é que a mentalidade de mercado trabalha para sermos cada vez mais esnobes e egoístas, suplantando toda a solidariedade e convívio público e eu tenho uma teoria para isso. No fundo, apesar de o capitalismo pregar a livre concorrência, os mais espertos sabem que a solidariedade é um problema, que a "livre" concorrência só é boa enquanto houver desigualdade estrutural, só é boa enquanto o cara que defende começa a maratona 10 km a frente dos seus competidores.
"A entrada de empresas estrangeiras são benéficas para a economia do país"
Isso não é uma verdade absoluta -- se assim fosse, não teríamos a crise de hiperinflação herdada da Ditadura Militar nos anos 80 nem a crise cambial de 1999 do governo FHC. Não sou contra a entrada de empresas estrangeiras no país, mas como estudei o mínimo de Economia, sei que a entrada de capital externo só é boa quando substancial parte da receita gerada pela empresa é revertida em novos investimentos ou em circulação de bens. O que certamente não é o caso do Uber.
Vejamos bem, o passageiro paga o Uber e o Uber... nada! Apenas redistribui uma fração do que ganha para os motoristas. A conta é simples, a cada carona, menos capital existe no país. O Uber não inverte um centavo no país, basicamente. Simplesmente embolsa o dinheiro, sem sequer pagar a quantidade de impostos necessários. Uma situação colonial é configurada quando há um monopólio e um fluxo direto de capital, de forma unilateral, de um país para o outro. E é exatamente isso que acontece com relação ao Uber.
Fator segurança
Uma das maiores críticas ao Uber é justamente os inúmeros casos de sequestro, assalto e estupro que aconteceram nos países que adotaram, sobretudo nos Estados Unidos. E, sem uma regulamentação da atividade, não há sequer como garantir a responsabilização do motorista agressor.
Por outro lado, o motorista também fica sujeito a todos os tipos de passageiros e pode ser vítima de assaltos, roubos e sequestros com frequência. Será bem difícil processar uma empresa estrangeira pelos danos materiais, nesses casos; basta pensar que, mesmo que o Uber seja condenado, não tem como fazer valer a sentença contra ele, uma vez que seu dinheiro e sua sede fica nos Estados Unidos.
Qual a saída?
Não sou avesso às inovações tecnológicas, sei que o Táxi não é um modelo que deve vigorar para sempre. Na verdade, demorou para mudar a forma como as coisas funcionam. De fato, o transporte público individual não se adaptou plenamente à nova realidade tecnológica, que certamente traz mais comodidade e, com ela, desafiadores.
Portanto, apesar de o Uber não ser o ideal para o que deveria ser o transporte público individual, ele nos dá uma luz sobre o que está velho e antiquado nos táxis. Primeiramente, deveria sim haver um aplicativo inteligente que te mostra a melhor carona e esse aplicativo poderia funcionar nos seguintes regimes:
1) criado e gerenciado pelo Estado, uma vez que as vias são públicas e é inegável que o serviço de táxi é de interesse público;
2) criado e gerenciado por uma empresa brasileira, a qual deveria operar por meio de um regime de concessão com o poder público.
3) criado e gerenciado por uma joint-venture, com sede no Brasil, a qual também deveria funcionar por meio de um regime de concessão com o poder público.
O regime citado acima deveria providenciar formas de se responsabilizar o Estado e o motorista, caso alguma coisa acontecesse ao passageiro, bem como os impostos arrecadados e as responsabilidades da contratante com relação às vias públicas, de uma forma bem parecida com o que já acontece com as concessionárias das rodovias federais e estaduais, às quais geram sua receita através do pedágio.
Deveria também haver uma desoneração das licenças dos taxistas, mas isso somente aconteceria na mesma medida em que o transporte coletivo fosse melhorado, de forma a controlar a demanda e a oferta, para que os taxistas não trabalhem quase feito escravos e ganhem uma ninharia (basta olhar para o trânsito de Lima, capital do Peru, que tem livre concorrência, um transporte coletivo péssimo e o pior tráfico e os taxistas mais pobres da América Latina), nem os de baixa renda fiquem desamparados e muito menos as vias fiquem em péssimas condições. Nesse caso, o transporte coletivo agiria como um "regulador natural" do mercado.
E se você não gosta de andar de ônibus, bicicleta é uma alternativa. Ou ir andando. O Brasil é o único país do mundo em que caminhar é considerado esporte... É estranha também essa gourmetização até da forma como alguém se locomove.
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