Durante a comemoração dos cem anos da Revolução Russa, a TV estatal russa promoveu a produção da série "Trotsky", a qual caiu nas graças do Ocidente e foi parar na Netflix. Imagine que você está fazendo cem anos de idade e, para comemorar, seus filhos prometem uma festa de arromba; chegada a data da festividade, aparece aqueles carros de som brega, com fumaça com cheiro de morango, que te expõem ao ridículo perante toda a comunidade. Pior, depois de fazer todas aquelas pirotecnias de segunda, alguém abre o microfone e resolve falar sobre a importância sua na vida dos familiares - e destrói a sua reputação perante todos.
Trotsky foi assassinado duas vezes - uma, no México, a mando do poder stalinista, contra o qual rivalizava ativamente, outra, de forma parcelada, com o assassinato de sua reputação. É inegável que, provavelmente, o revolucionário não tivesse uma personalidade fácil. Tocar uma revolução armada, em meio à maior guerra que o mundo conhecia até então (a Primeira Guerra Mundial), não é uma coisa que as correntes paz e amor da esquerda, propugnadas pelas facções alinhadas à teologia da libertação da Igreja Católica, conseguiria fazer. Não obstante, é importante ter em mente que, mesmo em meio a uma guerra civil de grandes proporções, o Partido Bolchevique preservou, até certo tempo, um importante modelo de tomada de decisões, na qual a base tinha a última palavra e o comitê central tomava decisões que poderiam ser referendadas pelos sovietes e pela base do partido; ou mesmo que, se houvesse tempo hábil, determinada decisão importante deveria ser debatida por essas instâncias mais populares de poder. Tal foi o caso do Tratado Brest-Litovski, no qual a Rússia abria mão de boa parte de seu território para conseguir sair da guerra e consolidar a sua revolução. O seriado apresenta esse episódio como sendo um momento de decisão única e exclusivamente de Trotsky, o que irritaria Lênin. É verdade que o Presidente do Comissariado do Povo bolchevique teria ficado contrariado com o grau de concessão, mas ele mesmo havia impulsionado o negociador russo, Trotsky, a conceder o que fosse preciso para consolidar a revolução; houve uma intensa participação dos sovietes para aprovar a proposta e, além disso, o próprio Lênin agiu perante o comitê central e o Politburo para passar a proposta de tratado da forma como se apresentava. A produção também não mostra as condições na qual o tratado foi assinado: a Alemanha pressionava a Rússia com intensas ofensivas militares, os bolcheviques experimentavam graves derrotas e o Exército Vermelho ainda não estava consolidado. Além disso, a atitude do partido bolchevique de tentar fazer emergir uma insurreição alemã para expandir a revolução proletária para a Europa Central é solenemente ignorada.
A série "comemorativa" dos cem anos da Revolução Russa também distorceu completamente os revolucionários envolvidos na guerra. Lênin é apresentado como um líder fraco, oportunista, que joga nos bastidores, que se utiliza do discurso para "manobrar a massa"; o Trotsky netflixiano é visto como um fanático que pouco apreço tinha pela vida dos demais, um ser completamente desumanizado, messiânico, diabólico (arrogante talvez tenha sido, ao se levar em consideração a postura sectária de seu fã clube, que mais se preocupa com o "ópio da revolução", do que com fomentar as bases da solidariedade para avançar na tomada de poder); Stalin aparece como um psicopata invejoso, incapaz, meio zumbificado, que fica puto com Trotsky devido a sua impertinência em não apertar a sua mão... Ignora-se completamente a forma como o dissenso é construído nas instâncias políticas, principalmente nas da classe trabalhadora: nos discursos internos, na geração de facções internas, nas alianças antagônicas e, porque não, no objetivo de chegar ao poder para apresentar um projeto de continuação. Em "Trotsky", no entanto, tudo é apresentado como mera intriga, com ares de novela das nove que bem poderia ser produzido pela Rede Globo se esta falasse russo.
Larissa Reissner, uma combatente da guerra civil, jornalista, uma mulher forte, é apresentada como uma mera "cortesã" de Trotsky, um objeto de conquista sexual que é utilizada por ele dentro de seu trem mágico, que bem poderia ser utilizado em um filme do Harry Potter. Após seu voluntariado, Larissa torna-se comissariada do Partido Bolchevique e espiã nas linhas inimigas, realizando grandes feitos heroicos. Não há qualquer registro bibliográfico que ateste a relação, sexual ou afetiva, entre Larissa e Leon, muito embora os dois tenham participado de algumas batalhas comuns. E mesmo que tivesse uma relação entre os dois, Larissa era uma mulher emancipada, e não uma cortesã que deveria satisfazer os desejos aristocráticos de Trotsky.
Sobre o Terror Revolucionário, numa das cenas do começo da série, Trotsky sai do trem fantástico para estancar um motim e aplica um decimatio, uma forma de punição romana na qual se assassina 10% de um destacamento que teria desertado; é verdade que a violência revolucionária, aprendida na época do exemplo jacobino da Revolução Francesa, foi utilizado, mas, como bem demonstra a Ordem n.º 59, Trotsky não fuzilava aleatoriamente, mas somente os desertores. Os desertores de Kapel, que foram sim fuzilados, não o foram a mando de Trotsky, mas de um tribunal revolucionário militar de campanha e tampouco foi utilizado o decimatio; Stalin criticou Trotsky pelas execuções por ele estar enviado os próprios bolcheviques à morte. Antes disso, ele dá um relógio caro a um soldado, para afirmar que seriam iguais - demonstrando um populismo tão fajuto, que lembra o presidente brasileiro assinando com a caneta Bic ou lavando roupas no tanque para passar a imagem que era do povão.
A relação de Lênin e Trotsky não era, desde o princípio, de troca de farpas. De início, não houve uma conversa maluca na qual Lênin dizia que queria "mudar o mundo" e supostamente perguntado o papel do povo nisso tudo. Trotsky foi convidado por Lênin a se apresentar em Londres, onde o partido redigia seu jornal. O líder bolchevique queria conhece-lo e convidá-lo a fazer parte do jornal Iskra; apenas quando o próprio Lênin convida-o a participar da direção é que as desavenças com Plekanov surgem. Trotsky conhece Natasha em uma palestra sobre emigrados, e não em um condomínio do seu desafeto. Após a revolução, Trotsky e Lênin trabalharam juntos e moraram quase juntos durante meses - e ninguém tentou jogar ninguém da sacada. Parvus e Trotsky eram conhecidos desde 1903, quando os dois trabalhavam juntos no mesmo jornal; Parvus ajudou-o a desenvolver a sua Teoria da Revolução Permanente e a sua vida era voltada para a política, e não para a obtenção de vantagens econômicas oportunistas. Somente depois de ter voltado para a Rússia, Parvus fez estranhos negócios com Gorky e outras tantas tratativas bizarras - sua amizade política com os comunistas havia cessado, no entanto. É bom também notar que Lênin não era o covarde que a série retrata; participou e comandou ativamente a tomada de poder de Outubro, lado a lado com Trotsky.
Stalin atacou pelo flanco das ligações colaboracionistas que Trotsky tinha no Partido Menchevique - porém, no exterior, não se fazia muita distinção entre o que seria Menchevique e o que seria Bolchevique. Era uma estratégia discursiva que visava polarizar o partido entre Trotsky e Stalin, para que um deles chegasse ao poder - ao fim e a cabo, a rivalidade se tornou paranoia e Stalin mandou assassiná-lo brutalmente, mas não por um jornalista que estava fazendo uma série de entrevistas, mas por um espião contratado que vai a casa de Trotsky apenas com a intenção de mata-lo. As ordens do regime stalinista se justificava no fato de a União Soviética estar terrivelmente atrapalhada na Segunda Guerra Mundial e que Trotsky poderia liderar uma contrarrevolução - algo que seu oponente realmente tinha em mente quando construiu a fragmentada Quarta Internacional para contrapor Stalin e aproveitar o cenário de guerra para fomentar a contrapropaganda. Não foi apenas por um aperto de mão.
Nenhum dos envolvidos é uma espécie de messias, por mais que frações idolatrem tanto a Trotsky, quanto a Stalin e Lênin. Porém, a vida revolucionária, a vida política em última instância, jamais deveria ser novelizada. Isto atende a um ideal de despolitização que muito serve ao poder estabelecido.
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