Charge antivacina de 1904
Em cada lugar do tempo e do espaço, há uma forma de se produzir e exercer o poder. Na nossa República Velha, o mandonismo era a forma política mais marcante e não havia muita preocupação em confundir o senso comum popular, pois o acesso à informação era escasso e a relação voto-interesse era mais direta. As pessoas eram obrigadas a votar naqueles que representavam os interesses dos coronéis e, vez ou outra, tinham uma demanda atendida de maneira populista. Nos dias atuais, a relação apoio-interesse é mais fortemente mediado pelo discurso, que serve muito mais para mobilizar sentimentos, que para esclarecer.
Nas primeiras décadas do século XX, as epidemias castigavam o Brasil. Peste bubônica, febre amarela, varíola assombravam o mandato de Rodrigues Alves, o presidente guaratinguetaense que primeiro pensou em termos de saúde pública e que acabou morrendo, ironicamente, no vácuo para começar o seu segundo mandato, em razão da pandemia de gripe espanhola. Para lidar com a situação catastrófica da saúde no Rio de Janeiro, ao contrário de Jair Bolsonaro, Rodrigues Alves buscou montar um time de especialistas na área, o mais conhecido dele, o Diretor-Geral de Saúde, Osvaldo Cruz. Paralelamente a isso, iniciou uma ferrenha campanha antipobre, derrubando casas e cortiços, e fomentando a primeira campanha habitacional do país - uma campanha informal, de omissão e repressão, que levou os trabalhadores a construir suas casas com restos de material na periferia, multiplicando os núcleos de favela cariocas. A derrubada em massa das moradias populares pressionou o preço do aluguel e a crise chegou até a classe média. Alves, no entanto, sabia que se não houvesse uma vacinação em massa na população, devido ao fato que o trabalhador vende a sua força de trabalho para alguém que mora no centro, estes iriam se contaminar entre si e devolver a doença para os ricos; uma campanha de vacinação obrigatória era necessária.
O Executivo pouco se preocupou em sensibilizar a opinião pública. Osvaldo Cruz exigiu amplos poderes para fazer a sua campanha sanitária e agia com total liberalidade, escolhendo quem deveria ser imunizado imediatamente, à força, e quem deveria deixar a casa para ser demolida. O caldo social entornou e o povo saiu às ruas para protestar, iniciando um levante contra o governo que ficou conhecido como Revolta da Vacina. Houve uma tentativa sufocada de golpe e o governo optou por decretar estado de sítio, por um lado, mas remover a obrigação da vacinação, por outro.
Ao contrário do que aconteceu há cem anos, os que se revoltam com a vacina hoje não são operários sem-teto que viam a vacina como o instrumento da burguesia e do governo para adestrá-los como animais e como símbolo de opressão aos seus direitos mais básicos; são pessoas que tiveram um certo acesso à educação, que sabem dos perigos da epidemia vigente e que entendem de maneira direta o que significa uma doença sem controle, inclusive para a economia, e que se engajam emocionalmente em teorias alternativas para poderem dar sentido político à sua insatisfação consigo mesmo e com as contradições do sistema capitalista que tanto defendem. O mandonismo foi substituído pela autoridade pós-moderna, que falseia seus desejos com discursos inflamados, mas esvaziados de conteúdo material.
Cabe lembrar que até a promulgação da Lei do Coronavírus, a vacinação não era compulsória, ao menos não no sentido de ser vacinado à força, e que o próprio Jair Bolsonaro foi quem determinou essa possibilidade (Lei n.º 13.979/2020, art. 3.°, III, "d") ; ele mesmo cria o fato, para se contrapor esquizofrenicamente depois. Muita coisa mudou de 1904 a 2020, mas algumas coisas permanecem como estão: o desejo do governo federal em se livrar dos problemas sociais eliminando os vulneráveis; seja vacinando ou lançando campanhas antivacinação, é sempre a saúde do rico que está em questão. Nós ficamos do lado da realidade e não do delírio: a vacina salva vidas.
Fernando Tremura é advogado e guarda universitário na Universidade de São Paulo.